Da recusa indevida dos planos de saúde para a cobertura de cirurgia bariátrica
Há alguns meses, tenho observado o crescimento da quantidade de pessoas que tem me procurado relatando um mesmo problema, cada vez mais recorrente: são clientes de planos de saúde que possuem problema de obesidade e têm indicação médica para a realização de cirurgia bariátrica, mas, mesmo estando em dia com o pagamento das mensalidades do plano e possuindo todos os relatórios médicos favoráveis ao procedimento, têm indeferido o pedido de cobertura contratual para a realização da cirurgia.
Em situações como essa, o que pode ser feito? O que o consumidor pode fazer para conseguir a cobertura do plano de saúde para a realização da cirurgia?
Não são raros os casos em que há negativa dos planos de saúde em realizar atendimentos e procedimentos obrigatórios, sob os mais diversos e ilegais argumentos.
Nos casos de obesidade mórbida, é frequente a recusa das operadoras em conceder cobertura para a realização de cirurgia bariátrica sob o argumento genérico de que “o caso do paciente não preenche todas as diretrizes de utilização estabelecidas para o procedimento”.
Diante da recusa dessas operadoras de saúde em autorizar a realização da gastroplastia redutora (outro nome para a cirurgia bariátrica), mesmo perante os relatórios e os exames médicos comprobatórios da urgente necessidade do procedimento cirúrgico, o que você, paciente e usuário de plano de saúde, poderá fazer?
Primeiramente, o usuário de plano de saúde precisa verificar se preenche os requisitos legais dispostos no Anexo II da Resolução nº 387/2015 da ANS.
De acordo com essa resolução, é obrigatória a cobertura da gastroplastia (cirurgia bariátrica) para pacientes com idade entre 18 e 65 anos (1), com falha no tratamento clínico realizado por, pelo menos, dois anos (2) e obesidade mórbida instalada há mais de cinco anos (3), quando preenchido pelo menos um dos critérios listados no Grupo I (4) e nenhum dos critérios listados no Grupo II (5). Os grupos são os seguintes:
GRUPO I:
a) Índice de Massa Corpórea (IMC) entre 35 Kg/m2 e 39,9 Kg/m2, com comorbidades (doenças agravadas pela obesidade e que melhoram quando a mesma é tratada de forma eficaz) que ameacem a vida (diabetes, ou apnéia do sono, ou hipertensão arterial, ou dislipidemia, ou doença coronariana, ou osteo-artrites, entre outras);
b) IMC igual ou maior do que 40 Kg/m2, com ou sem co-morbidades.
GRUPO II:
a) pacientes psiquiátricos descompensados, especialmente aqueles com quadros psicóticos ou demenciais graves ou moderados (risco de suicídio);
B) uso de álcool ou drogas ilícitas nos últimos 5 anos.
Assim, pode-se dizer, de forma resumida, que são cinco elementos essenciais para se verificar se a operadora do seu plano de saúde é obrigada a realizar a cirurgia bariátrica:
1) Idade entre 18 e 65 anos;
2) Falha no tratamento clínico por pelo menos dois anos;
3) Obesidade mórbida instalada a pelo menos cinco anos;
4) IMC entre 35 Kg/m2 e 39,9 Kg/m2, com comorbidades que ameacem a vida ou IMC igual ou maior do que 40 Kg/m2, com ou sem comorbidades e;
5) Não possuir problemas psiquiátricos graves, especialmente aqueles com risco de suicídio, ou problemas de dependência de álcool ou de uso drogas ilícitas nos últimos cinco anos;
Se você, consumidor, estando adimplente com o plano de saúde, verificar o preenchimento de todos os critérios listados acima, possuir indicação médica do profissional de saúde que acompanha o seu caso, e o plano que você contratou prever a realização de procedimentos cirúrgicos, não há argumento plausível, médico ou jurídico, que justifique a conduta da operadora de saúde de recusar a cobertura contratual solicitada por você.
Diante de uma situação como essa, há duas vias possíveis a que o consumidor pode recorrer para tentar resolver o problema, quais sejam: a via administrativa e a via judicial.
Qual a diferença entre as vias administrativa e judicial? É possível ajuizar uma ação sem antes apresentar uma reclamação administrativa?
Tentar resolver o impasse pela via administrativa significa procurar meios não judiciais de solução do litígio, como recorrer administrativamente do indeferimento do pedido perante a administradora do plano, ou mesmo registrar reclamação formal junto aos órgãos públicos de controle e proteção ao consumidor, como o PROCON e a ANS (Agência Nacional de Saúde).
Registre-se que é recomendável, porém não obrigatório, o exaurimento da via administrativa antes de se recorrer à via judicial. Isso porque, às vezes, pode ser que o consumidor consiga resolver o seu problema sem necessitar provocar o Poder Judiciário, evitando, com isso, todo o desgaste naturalmente relacionado a esse tipo de demanda. Entretanto, caso o consumidor não tenha interesse na via administrativa, não há nada que o impeça de ir diretamente ao Judiciário. Inclusive, é esse o entendimento do Superior Tribunal de Justiça:
“ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. SERVIDOR PÚBLICO. ABONO REFEIÇÃO. INTERESSE DE AGIR. PRÉVIO REQUERIMENTO ADMINISTRATIVO. DESNECESSIDADE. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO.
1. É pacífica a jurisprudência desta Corte de que o esgotamento da instância administrativa não é condição para o ingresso na via judicial. 2. Agravo Regimental do MUNICÍPIO DE NITERÓI desprovido. (AgRg no AREsp 217.998/RJ, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 18/09/2012, DJe 24/09/2012)”
Em que pese não seja obrigatório, outra utilidade de se recorrer à via administrativa antes de entrar com uma ação judicial é de caráter estratégico, visando justamente o futuro ajuizamento de um processo, qual seja, a constituição de provas em favor do consumidor.
Como se sabe, numa ação judicial o indivíduo não pode apenas formular alegações sem demonstrar minimante aquilo que está sendo dito, de modo que, se não forem apresentadas evidências relevantes que corroborem os fatos alegados, muito provavelmente o pedido da parte interessada será indeferido pelo Juízo.
Assim, provocar administrativamente o plano de saúde antes de uma ação judicial é uma boa forma de constituir provas em favor do consumidor, visando instruir uma posterior ação judicial em caso de não ocorrer a resolução consensual da lide.
E o que acontece se o pedido administrativo for indeferido pelo plano de saúde ou se os órgãos de controle, como PROCON e ANS, não conseguirem garantir o seu direito à cirurgia pretendida? E se você não tiver interesse ou mesmo condições físicas e emocionais de esperar uma solução administrativa do impasse?
Nesses casos, a via judicial é a mais eficaz para se buscar a proteção do direito do consumidor usuário do plano de saúde, sendo possível o ajuizamento de uma ação de fazer, visando compelir o plano a arcar com a realização do procedimento médico desejado, com pedido de antecipação de tutela e indenização por danos morais.
E qual é o entendimento dos tribunais acerca do assunto? O plano de saúde pode negar cobertura mesmo se houver indicação médica para a realização da cirurgia bariátrica?
O entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e dos tribunais estaduais (inclusive o TJDFT) é no sentido de que a escolha dos procedimentos, dos meios e dos recursos necessários para o tratamento do paciente cabe unicamente ao médico responsável pelo acompanhamento do indivíduo, e não ao plano de saúde, constituindo ato ilícito a recusa da operadora quando em desconformidade com a indicação médica especializada.
Em outras palavras, compete ao médico que acompanha o paciente segurado indicar o tratamento que melhor se amolda às suas necessidades e que alcançará o resultado necessário para a cura da doença, não podendo a administradora do plano de saúde recusar o tratamento em oposição ao que o médico responsável determinou.
É também importante registrar que o plano de saúde não pode negar a realização de cirurgia bariátrica ao paciente por não preenchimento do requisito de estabilidade do peso por mais de cinco anos, se há relatório médico atestando a necessidade desse tratamento específico.
Por fim, como já mencionado, há sólido entendimento jurisprudencial no sentido de que a negativa do pedido para a realização de cirurgia bariátrica necessária para a manutenção da saúde do segurado é ato ilícito passível de indenização por danos morais.
E o que fazer se a operadora de saúde negar a cirurgia bariátrica alegando que houve omissão da obesidade no ato de contratação do plano pelo consumidor?
De acordo com entendimento jurisprudencial do STJ, compete à operadora de saúde evidenciar que, no momento da contratação, o segurado se comportou com má-fé ao omitir a existência ou a gravidade de determinada enfermidade, exigindo, quando julgar necessário, a realização de exame médico anterior à realização do negócio, tendo em vista que a boa-fé é sempre presumida e, por consequência, a má-fé deve ser comprovada por quem a alega.
Logo, a operadora de plano de saúde pode, por exemplo, exigir do segurado contratante a entrega de exames médicos comprovando a inexistência de doenças preexistentes, como a obesidade mórbida, o que autorizaria, em tese, a recusa da cobertura securitária.
Acontece que normalmente não é isso o que acontece. Na maioria das vezes, as operadoras de planos de saúde simplesmente comercializam os seus serviços sem exigir qualquer tipo de exame do consumidor, interessando-se mais em vender o seu produto do que propriamente em garantir a saúde do segurado.
Dessa forma, quando o segurado necessita utilizar os serviços do plano contratado, a operadora busca de todas as formas possíveis encontrar meios de negar a cobertura pretendida, visto que seu interesse é apenas lucrar, e não gastar dinheiro, suscitando, entre outros argumentos, a tese da doença preexistente.
Por ver se multiplicar esse tipo de situação, o STJ firmou entendimento no sentido de que, se o plano não tomar os cuidados mínimos necessários antes da realização do contrato, não pode, depois, alegar desconhecimento de situações anteriores ao negócio, como é o caso da doença preexistente.
Assim, diante da não comprovação da má-fé do usuário do plano de saúde ou da não realização de prévio exame médico, subsiste intangível a obrigação da operadora de custear o tratamento prescrito a esse paciente, sob pena de violação aos princípios consolidados na Constituição Federal de 1988, sobretudo o artigo 6º, o artigo 170, inciso V, e o artigo 196, que tratam do direito à saúde, e ao sistema de proteção ao consumidor estabelecido no Código de Defesa do Consumido (CDC).
Além da realização da cirurgia, a recusa indevida do plano de saúde faz nascer algum outro direito? Cabe dano moral nesse tipo de situação?
De acordo com o entendimento dos tribunais brasileiros, negar a realização da gastroplastia redutora ao paciente que tem indicação médica para o procedimento cirúrgico significa atentar contra o seu direito à saúde, seu direito à vida, e também a boa-fé contratual, além de constituir transgressão ao princípio da dignidade da pessoa humana, violando os direitos da personalidade do consumidor prejudicado e ocasionando o dano moral.

Logo, a indevida recusa de cobertura do tratamento cirúrgico prescrito por profissional médico do qual o segurado necessita, além de qualificar-se como inadimplemento contratual, justificando o pedido de obrigação de fazer, provoca no consumidor prejudicado angústia, desassossego, apreensão e insegurança, afetando seu equilíbrio emocional, maculando substancialmente os atributos da sua personalidade, configurando, dessa forma, fato gerador do dano moral, legitimando que seja contemplado com indenização em dinheiro compatível com a lesividade do ilícito praticado pela operadora do plano.
A quem devo recorrer em caso de violação dos meus direitos? Quem é que julga esse tipo de ação?
Se você for vítima de alguma dessas situações descritas acima, a depender do valor que se pretende receber a título de indenização, é possível ajuizar uma ação no Juizado Especial Cível (se o valor dos seus pedidos não ultrapassar o equivalente a quarenta salários mínimos), ou então em uma Vara Cível (independentemente do valor da indenização).
Para ajuizar uma ação nos Juizados Especiais, se o valor dos seus pedidos for de até vinte salários mínimos, não é preciso de advogado, ou seja, você pode propor a sua ação sozinho (apesar de não ser aconselhável!). Se o valor dos pedidos ficar entre vinte e quarenta salários mínimos, aí é obrigatória a participação de um advogado.
De outro lado, se você preferir ajuizar sua ação em uma Vara Cível, necessariamente vai ser obrigatório a atuação de um advogado, independentemente do valor que se pretende receber a título de indenização.
Em todo caso, em situações complexas como as que envolvem problemas com planos de saúde, é sempre aconselhável procurar um advogado, mesmo que você queira ajuizar sua ação em um Juizado Especial, de preferência um profissional que tenha conhecimento do assunto e possa lhe ajudar a encontrar a melhor solução aplicável à sua situação.
A ajuda do advogado é importante porque, a depender do caso, se você perder a sua ação (se o seu pedido for julgado “improcedente”), não será mais possível iniciar um novo processo, o que significa que dificilmente você vai conseguir reaver o seu prejuízo.
Logo, a melhor maneira de se precaver é realmente procurar um advogado, ao menos para discutir o seu caso e lhe prestar uma consultoria (serviço esse que, lembremos, também é remunerado), indicando os argumentos que você deve utilizar caso pretenda se aventurar sozinho no mundo jurídico.
Brasília, 03 de abril de 2017.
Clarissa Lins
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