A ação de busca e apreensão sob a ótica do art. 53 do CDC
Prevista no art. 66-B da Lei 4.728/65, a alienação fiduciária em garantia é uma modalidade contratual na qual a pessoa, natural ou jurídica (fiduciante), toma empréstimo de uma instituição financeira (fiduciário) com o objetivo de comprar um bem móvel (geralmente um veículo), servindo este bem como garantia ao empréstimo tomado, mecanismo que facilita a recuperação do crédito e permite ao banco trabalhar com taxas de juros mais baixas, na medida em que, na hipótese de inadimplemento, o fiduciário pode vender o bem sem ter que suportar todos os trâmites de uma ação executiva.
Para isto, foi criado o Decreto-Lei 911/69, que regulamente a ação de busca e apreensão em alienação fiduciária. Resumidamente, o dispositivo legal permite que o credor fiduciário, desde que comprovada a mora, em caráter liminar, apreenda o veículo dado em garantia e o venda, abatendo o valor obtido do saldo devedor.
Art. 2º No caso de inadimplemento ou mora nas obrigações contratuais garantidas mediante alienação fiduciária, o proprietário fiduciário ou credor poderá vender a coisa a terceiros, independentemente de leilão, hasta pública, avaliação prévia ou qualquer outra medida judicial ou extrajudicial, salvo disposição expressa em contrário prevista no contrato, devendo aplicar o preço da venda no pagamento de seu crédito e das despesas decorrentes e entregar ao devedor o saldo apurado, se houver, com a devida prestação de contas. (Redação dada pela Lei nº 13.043, de 2014)
§ 1º O crédito a que se refere o presente artigo abrange o principal, juros e comissões, além das taxas, cláusula penal e correção monetária, quando expressamente convencionados pelas partes.
§ 2º A mora decorrerá do simples vencimento do prazo para pagamento e poderá ser comprovada por carta registrada com aviso de recebimento, não se exigindo que a assinatura constante do referido aviso seja a do próprio destinatário. (Redação dada pela Lei nº 13.043, de 2014)
A venda, contudo, deve aguardar o decurso do prazo de 5 dias conferido ao devedor para pagar a integralidade da dívida¹. Caso seja realizado o pagamento, o bem deverá ser restituído ao fiduciante livre do ônus da propriedade fiduciária.
Art. 3o O proprietário fiduciário ou credor poderá, desde que comprovada a mora, na forma estabelecida pelo § 2o do art. 2o, ou o inadimplemento, requerer contra o devedor ou terceiro a busca e apreensão do bem alienado fiduciariamente, a qual será concedida liminarmente, podendo ser apreciada em plantão judiciário. (Redação dada pela Lei nº 13.043, de 2014)
§ 1º Cinco dias após executada a liminar mencionada no caput, consolidar-se-ão a propriedade e a posse plena e exclusiva do bem no patrimônio do credor fiduciário, cabendo às repartições competentes, quando for o caso, expedir novo certificado de registro de propriedade em nome do credor, ou de terceiro por ele indicado, livre do ônus da propriedade fiduciária. (Redação dada pela Lei 10.931, de 2004)
§ 2º No prazo do § 1º, o devedor fiduciante poderá pagar a integralidade da dívida pendente, segundo os valores apresentados pelo credor fiduciário na inicial, hipótese na qual o bem lhe será restituído livre do ônus. (Redação dada pela Lei 10.931, de 2004)
Na forma do caput do art. 2º, a venda do bem é feita de forma livre e pelo próprio credor, ou seja, não há restrições como observância ao valor de mercado, preço vil, etc. Isso permite que a venda seja feita de forma muito mais rápida, mas por valores às vezes muito baixos.
Se o dinheiro obtido com a venda ultrapassar o total da dívida, o excedente é devolvido ao devedor. Do contrário, o credor por perseguir o saldo remanescente.
Pelo exposto, fica claro que a situação é demasiado vantajosa à instituição financeira. Felizmente, a alienação fiduciária em garantia é uma relação de consumo e, como tal, regida pelo CDC, de modo que a invocação de seu art. 53 pelos advogados dos devedores fiduciantes é quase imperativa:
Art. 53. Nos contratos de compra e venda de móveis ou imóveis mediante pagamento em prestações, bem como nas alienações fiduciárias em garantia, consideram-se nulas de pleno direito as cláusulas que estabeleçam a perda total das prestações pagas em benefício do credor que, em razão do inadimplemento, pleitear a resolução do contrato e a retomada do produto alienado
Uma tese muito utilizada para tentar minimizar os reveses sofridos pelo devedor vítima de uma busca e apreensão é a seguinte: retomada do bem dado em garantia dá direito ao devedor de reaver as parcelas já quitadas, de modo a retornar-se ao status quo ante, ou seja, como se o negócio nunca tivesse existido.
Ora, de início pode parecer que faz sentido, afinal, é exatamente que diz o CDC. Será?
Bem, o próprio texto legal já desconstrói este raciocínio, pois é expresso ao proibir apenas a perda total, garantindo a possibilidade de restituição de pelo menos uma parte do valor despendido.
Por seu turno, o art. 1º do Decreto-Lei 911/69, que em seu § 4º previa a devolução de possível saldo da venda do bem alienado, foi revogado pela lei 10.931/04. Ainda, o ordenamento jurídico vigente, em consonância com o entendimento jurisprudencial, segue no sentido da impossibilidade de rever parcelas quitadas, sob pena de ferir-se o ato jurídico perfeito.
Assim prevê o inciso XXXVI do art. 5º da Constituição Federal: “A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”
Já o parágrafo 1º do art. 6º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro esclarece: “Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou”
Admitir-se a restituição das parcelas já adimplidas após a apreensão seria como dar carta branca à inadimplência, pois permitiria que os devedores utilizassem os veículos sem se preocupar com sua conversação e, quando não os quisessem mais, simplesmente parariam de pagar, esperariam pela apreensão e receberiam de volta todo o dinheiro gasto com o pagamento das parcelas. Ora, estaria o Banco Credor pagando para o financiado utilizar-se do bem.
Em verdade, uma norma não contraria a outra, mas ambas se complementam. Ao passo que o art. 53 do CDC proíbe a perda total das parcelas pagas, o art. 2º Decreto-lei 911/69 prevê a devolução destes valores em momento posterior, qual seja, apenas após a venda do bem, e somente da parte que eventualmente exceda o total da dívida.
A jurisprudência caminha neste sentido:
ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA - BUSCA E APREENSÃO DEVOLUÇÃO DOS VALORES PAGOS PELA DEVEDORA – INADMISSIBILIDADE - É certo que o CDC deve ser aplicado aos contratos de financiamento garantidos pela alienação fiduciária, contudo, a legislação de alienação fiduciária não foi revogada, e por regular, especificamente, este tipo de contrato, sua incidência não é afastada pelas disposições do Código Consumerista. Subsiste a regra do art. 2º, "caput", do Decreto-lei 911/69, que preconiza o pagamento do crédito e despesas decorrentes e a posterior devolução do saldo se houver, a qual deverá ocorrer após a venda do veículo pelo credor fiduciário - Fica suspensa a execução das verbas de sucumbência, nos termos do artigo 12 da Lei nº 1.060/50, ante a gratuidade de justiça concedida à apelante Apelo provido em parte. (Processo: APL 00096331420108260510, Órgão Julgador: 35ª Câmara de Direito Privado, Publicação: 02/12/2013, Julgamento: 2 de Dezembro de 2013, Relator: José Malerbi).
E ainda:
PROCESSO CIVIL. APELAÇÃO CÍVEL. BUSCA E APREENSÃO. DECRETO LEI 911/69. DEVOLUÇÃO DE VALORES PAGOS. VENDA DO VEÍCULO NÃO COMPROVADA. REVISÃO DE CLÁUSULAS CONTRATUAIS. AUSÊNCIA DE PURGA DA MORA. IMPOSSIBILIDADE.
1. Consoante estabelecido no art. 2º do Decreto Lei 911/69, em busca e apreensão de bem móvel em contrato com cláusula de alienação fiduciária, a restituição de valores pagos pelo devedor ocorre apenas após o credor realizar a venda do bem e desde que a quantia resultante da venda extrapole o débito existente relativo ao contrato.
2. Forçoso concluir que o pedido do réu não merece acolhida quando ele não se desincumbe de demonstrar fato constitutivo de seu direito, o que poderia ter ocorrido mediante a comprovação da existência de saldo em seu favor ou diante da negativa formal da instituição financeira em fornecer a prestação de contas da suposta venda.
3. Embora seja cabível a discussão de cláusulas contratuais em sede de ação de busca e apreensão de bem objeto de alienação fiduciária, a ausência de purga da mora com base nos valores apresentados pelo credor na peça de ingresso, impede a apreciação do pleito revisional formulado pelo devedor (artigo 3º, § 2º, do Decreto-Lei n. 911/69).(Processo: APC 20131310069972, Órgão Julgador: 2ª Turma Cível, Publicação: Publicado no DJE: 10/11/2015. Pág.: 226, Julgamento: 4 de Novembro de 2015, Relator: MARIO-ZAM BELMIRO).
Assim, a conclusão a que se chega é a de que o Decreto-Lei 911/69 não viola o CDC neste aspecto, pois a possibilidade de restituição dos valores pagos existe, mas é, como dito, apenas uma possibilidade, não havendo nenhuma garantia de que ao final de todas as etapas o consumidor terá algum valor a receber.
Inobstante, lhe é garantido o direito de exigir a prestação de contas, tal como preconizado na parte final do caput do art. 2º do Decreto-Lei 911/69.
Rafael Aguiar
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